está a acontecer tudo exactamente igual: vieste cá a casa e eu tinha a cabeça completamente noutro lugar. a entrega quase final era na semana seguinte e eu só conseguia pensar que, em vez de estar a perder tempo contigo, podia estar a desenhar umas plantas ou umas axonometrias. depois seguiram-se dias muito complicados, em que adormeci a horas anapropriadas e acordei, claro, a horas também erradas. perdi a fome porque é o que acontece sempre quando tenho muitos problemas para resolver. comi somente iogurtes durante duas semanas, cheguei a colar três dias seguidos sem sair de casa e fumava às escondidas de mim própria. recusei todos os convites para beber uns copos no bairro.
uma vez não chega
Teria sido mais fácil se eu não estivesse cansada e se não tivesse trocado já de sapatos com a minha amiga. Nada teria acontecido se a vodka já não me tivesse enjoado, e se eu não tivesse já pousado as armas. Mas ele passou e veio-me com aquela conversa do eu tenho a certeza que nos conhecemos. E tudo se dificultou...
Foi sempre essa a vida que eu quis: todas as quintas ir a casa de uma moça brasileira que faz manicure impecavelmente numa rua perpendicular à Avenida da Liberdade, ficar do alto do seu terceiro andar e observar o céu ficar escuro enquanto a brisa se arrefece dos primeiros dias de Verão. Mas tudo o que eu queria, tudo o que eu queria era um almoço de picanha no Leblon, um suco de laranja e manga para a descida até à praia ser mais fácil, um picolé de côco, as montanhas a cada esquina, entrar numa lojinha de camelôs e não comprar uma única coisa.
Caminharam de mãos dadas porque era o que dizia no protocolo. Os pés encharcavam-se de água que as ondas traziam e ela queria imortalizar aquele momento porque o vira um dia nos seus sonhos. Na verdade, toda aquela tarde fora tecida conforme um protocolo: Ele sorria de vez em quando, acariciava-lhe os cabelos quando o vento era mais aborrecido e pagou o robalo grelhado que comeram às duas da tarde. No fim de contas, ela queria apenas que ele lhe dissesse que era a mulher mais encantadora que algum dia conhecera, enquanto ele não sossegava porque precisava muito de a beijar, de lhe prender os braços, de lhe morder o pescoço, abrir-lhe as pernas por fim.
quando me sento no estirador não tenho a mínima vontade de desenhar o que quer que seja. os homens que vou conhecendo são apenas um punhado de berlindes que guardo no bolso. aguardo chamadas, aguardo mensagens, aguardo que uma das minhas melhores amigas que namora com um dos melhores amigos dele me dê notícias. resolvo problemas com esforço, tenho uma pilha de roupa no sofá do quarto, a cozinha grita para ser alinhada e preciso desesperadamente que a minha pele se bronzeie. a televisão tem o volume demasiado alto e começou a chover lá fora. eu lembro-me de gostar de chuva, quando eu me entretinha entre mantas e canecas de chocolate.
Não sei. Já não sei de cor o seu sorriso. Já não sei a sua voz no meu ouvido, dizendo uma tonteria qualquer. Já esqueci o número de degraus daquelas escadas apertadas e vertiginosas. Não sei o cheiro das almofadas. Não me lembro da música timbalada que nos adormeceu. Não sei a intensidade da luz que me acordou inevitavelmente. Não sinto já as mãos no meu colo, os lábios nas minhas mãos. Não sei se o amo ainda. Não sei se um dia o amei.
estou tão perturbada. tão, tão, tão. porque no fundo sei que ainda vamos estar um punhado de vezes entrelaçados como um só. embriagados ou não, apaixonados ou não, arrependidos ou não. e vamos adormecer-nos um ao outro. vamos impregnar-nos no cheiro um do outro e recordá-lo nas duas semanas seguintes. não sei se foram as tuas mãos, se os teus lábios, se os teus olhos ou se a tua imagem de costas desnudas no teu quarto. não sei se foram as tuas palavras no primeiro dia que nunca mais se repetiram. és linda, és linda, és linda, és linda.
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